O fim de uma Era. Sim, literalmente. Foram 18 anos de futebol americano influenciando pessoas, das maneiras mais diferentes, mas sempre impactante, um exemplo de retidão, profissionalismo e de liderança. Esta palavra, liderança, talvez seja a que mais defina o legado de Gabriel Mendes, o Biel, para o futebol americano nacional.
Muitas passagens são famosas e impactantes. Talvez a mais midiática delas tenha a ver com este espaço, o Salão Oval, e o Mundial de Ohio, em 2015. Como coordenador de special teams, Biel fez uma das preleções mais emocionantes da história do esporte nacional, em quaisquer modalidades. Uma injeção de ânimo que fez parte do resultado histórico: o primeiro triunfo da Seleção Brasileira Masculina em Mundiais.
Outros ainda podem lembrar do título nacional do Vasco Patriotas contra o T-Rex, em 2014, ou a vitória da Seleção Brasileira contra a Argentina no Mineirão, em 2016, já na posição de head coach.
A minha lembrança (Victor Francisco) é de um jogo da fase regular da Superliga em 2016, Vasco Patriotas e Botafogo Reptiles. No primeiro tempo, um 7 a 7 onde o Vasco não estava tão concentrado assim e um segundo tempo avassalador dentro de um jogo de duas equipes de forças equilibradas. A diferença: no primeiro tempo, Biel não estava presente, por conta de seu trabalho; no segundo, lá estava ele na sideline – uma presença que, por si só, já exige que cada um dê o seu melhor.
Um líder de caráter ilibado e inabalável, exemplo a ser seguido dentro e fora dos gramados do nosso amado FABR.
Confira, a seguir, a entrevista exclusiva de Gabriel Mendes ao Salão Oval para anunciar a sua aposentadoria do esporte.
Pergunta: Existe algum fator crucial para você decidir a aposentadoria ou foi uma junção de fatores? O quanto o Mundial ter sido postergado para 2023 e a diretoria da CBFA ter renunciado foi decisivo pra isso?
Gabriel Mendes: A decisão já estava tomada há algum tempo. A ideia era encerrar a carreira depois do Mundial da Austrália, marcado inicialmente para 2019. Com o adiamento do Mundial, entendi que não faria sentido aguardar mais quatro anos. Minha decisão foi essencialmente pessoal. Eu preciso me dedicar 100% à carreira jornalística. E o tempo livre, quero reservar para a vida pessoal. O Vasco Patriotas (hoje Almirantes) me consumia bem mais do que a seleção. Deixar o Vasco já tinha me devolvido bastante tempo. Mas a Seleção ainda consumia algumas horas das quais não posso mais abrir mão (pensando no melhor para a minha vida profissional e pessoal). Além disso, eu realmente acho que o head coach da Seleção precisa ser alguém que tenha convívio diário com o futebol americano. E desde que saí do Vasco, perdi esse contato. Você não desaprende a ser coach, mas fica enferrujado se não praticar. As tomadas de decisão, as terminologias, a dinâmica de treinos. Tudo isso exige prática, aperfeiçoamento contínuo. Então, com toda humildade, eu sinceramente acho que não sou mais o melhor nome para comandar a seleção.
Pergunta: Há quanto tempo você está no futebol americano? Desde a praia, com o Reptiles, a passagem campeã brasileira no Vasco e a Seleção, você está preparado para estar totalmente distante deste mundo que faz parte de você (talvez) metade da sua vida? É realmente uma aposentadoria ou um sabático para você poder avaliar como voltar, talvez em um posição que não exija tanto tempo e dedicação?
Gabriel Mendes: Foram 18 anos de FA, com uma pausa de dois anos no meio. Eu estou com 36 anos. Então, precisamente, o FA me acompanhou em metade da minha vida. Eu não tenho dúvidas de que o FA contribuiu de forma decisiva para a minha formação (pessoal e profissional, inclusive) e, por isso, serei sempre grato ao esporte e às pessoas com quem convivi. O FA foi fundamental na consolidação de algumas das minhas principais virtudes, como a liderança, a capacidade de organização, a inteligência emocional, a rapidez de raciocínio, o senso de justiça, o respeito às diferenças. Todas esses aspectos me tornaram um profissional melhor, um marido melhor, um filho melhor, uma pessoa melhor. Então é claro que eu ponderei muito e não foi fácil deixar para trás esse esporte que, durante muito tempo, foi parte indissociável de quem eu sou. Mas eu refleti bastante, pesei prós e contras e tomei uma decisão que não tem volta. Acho que já dei minha contribuição ao esporte e agora preciso deixar o caminho livre para os coaches que realmente escolheram viver do futebol americano (o que não é o meu caso).
Pergunta: Você considera que a estrutura descentralizada, com os camps regionais e um staff técnico bem focado em posições, são o seu maior legado na Seleção?
Gabriel Mendes: Exato. Nunca pretendi ser lembrado pelos aspectos técnicos e táticos da minha gestão. Não quis revolucionar o estilo de jogo da Seleção e trazer um playbook inovador ou algo do tipo. Minha prioridade sempre foi criar uma filosofia baseada em transparência, organização e eficiência. Saber delegar funções faz parte das características de um bom líder. O desafio é escolher pessoas em que você possa confiar e deixar que elas toquem o show. Se você analisar nossa comissão técnica, vai ver que eu me cerquei dos melhores nomes do País e consegui administrar um ambiente de respeito e cooperação. Sempre tive minha posição de head coach respeitada e dei autonomia para os coaches Brian, Clayton e Tidus tocarem seus setores. Eles, por sua vez, também sempre estimularam e deram espaço aos assistentes e coordenadores de posição, sem precisar abrir mão de sua posição de liderança. Além de uma comissão técnica respeitada, acredito que a criação do Departamento de Scouting (um antigo projeto do coach Clayton) foi fundamental na consolidação da cultura de vídeos no País. Conseguimos atingir times, atletas e coaches do País inteiro e passamos a mensagem de que os melhores atletas estão sendo avaliados e qualquer um, não importa o time ou a cidade, pode ser chamado, se estiver entre os melhores.
Outro legado da nossa gestão, sem dúvidas, foi o patamar alcançado nos eventos da Seleção. No camp de BH, os jogadores e coaches não gastaram um centavo. Receberam passagens, hospedagem, alimentação, traslado e tiveram todas as facilidades (campo de treino, sala de vídeo, estádio de Copa do Mundo). Isso deveria ser regra. É um absurdo um atleta ou treinador ter que pagar para servir a Seleção. Portanto, de maneira geral, entendo que elevamos o nível de exigência e respeito para com a Seleção; democratizamos o acesso; consolidamos a cultura de vídeos; e pavimentamos o caminho para os próximos passos na evolução do FA. Considero o saldo bastante positivo, mas não tenho dúvidas de que ainda há muito por fazer e muito para evoluir.
Pergunta: Reptiles ou Vasco? Qual foi mais marcante? E o que eles foram importantes para a sua formação como técnico de futebol americano e até mesmo como pessoa?
Gabriel Mendes: O Reptiles foi a minha primeira experiência na liderança de um grupo esportivo. Comecei como jogador. E fui um jogador razoável. Estive nas seleções do campeonato como defensive end (2003), como tight end (2004 e 2005) e como center (2008). No segundo ano de Reptiles, virei coordenador defensivo. Depois, coordenador ofensivo. Em seguida, head coach e presidente do time. No Reptiles, fui pentacampeão estadual, ajudei a construir uma dinastia e vivi alguns dos melhores momentos da minha juventude. Éramos de fato uma família, formamos laços de amizade que perduram até hoje. Então, o Reptiles sempre terá um espaço enorme no meu coração e nas minhas lembranças. Nessa época, paralelamente ao Reptiles, fui o primeiro diretor do Conselho Disciplinar da extinta AFAB. Depois, presidente do Conselho de Arbitragem da AFAB, sucedendo o insubstituível Daniel Vasques. Tudo isso me ajudou muito no desenvolvimento dos meus atributos gerenciais, políticos e diplomáticos. E quando eu achei que o FA já não tinha mais nada para me oferecer, surgiu em 2012 a oportunidade de ser técnico do Vasco. Isso, por si só, já seria inesquecível. Mas o futuro me reservava muito mais. Fui campeão pelo time do meu coração, um sonho para qualquer cruzmaltino. Dei a volta olímpica em São Januário, ouvindo gritos de “é campeão” das arquibancadas que eu tantas vezes frequentei. Puxei o “Casaca” antes dos jogos e nunca deixei de me arrepiar. Entre 2014 e 2015, recebi o reconhecimento da torcida vascaína, pelo bom trabalho à frente do Patriotas. Até hoje, quando vou aos jogos, um ou outro torcedor me reconhece e me dá os parabéns por “ter resgatado o orgulho de ser vascaíno naqueles anos difíceis”. Esse carinho da torcida é algo indescritível. Lá atrás, quando comecei no esporte, eu nunca imaginei que o FA me daria tantas alegrias, tantas histórias, tantos ensinamentos e tantos amigos.
> Confira o Hangout com Biel, após o título brasileiro de 2014
Pergunta: E o que você achou da junção de Reptiles e Vasco agora? Não dá vontade de fazer parte disso?
Gabriel Mendes: Há algum tempo eu já comentava que o Rio precisava de uma movimentação significativa para voltar a ter protagonismo no cenário nacional. Algo como a fusão dos três grandes ou pelo menos dois deles, como aconteceu. É claro que o anúncio da fusão entre Vasco e Reptiles mexeu comigo. Seria meu sonho de consumo há alguns anos. Mas eu tinha me desligado do Vasco um ano antes e não faria sentido voltar atrás. As decisões importantes da minha vida eu tomo sempre com bastante reflexão. E não gosto de ficar olhando para trás, depois de ter escolhido um caminho. Naturalmente, não apago o passado, nem o carinho que tenho pelos dois times. Então vou dar sim minha contribuição e meu apoio. Mas na arquibancada, como o torcedor número 1 do Vasco Almirantes. Ainda mais agora que deixei a Seleção, posso vestir a camisa, sem qualquer constrangimento.
Pergunta: E o futuro do FABR – existe um risco de não conseguir continuar crescendo, agora que protagonistas da “primeira onda” como você, Duda (Duarte) e outros estão aposentando e/ou já cansados da batalha?
Gabriel Mendes: Eu sempre digo que o amor nos trouxe até aqui. Mas existe um teto para o amor. E já atingimos esse teto. Não dá mais pra batermos no peito e dizermos: “Olha que bonito o que eu faço por esse esporte na base do amor”. Tá na hora de dizermos: “Olha que orgulho. É o futebol americano que paga as minha contas”. Isso já está acontecendo par alguns jogadores e coaches. E esse é o caminho. Gestão profissional, captação de recursos, respeito com a imprensa e o público. Num ambiente eficiente e organizado, o nível técnico vai naturalmente aumentar (como tem aumentado). Temos ótimos exemplos no Brasil de que uma gestão séria e responsável se traduz em resultados dentro de campo. A própria Liga BFA tá cada vez mais organizada. E, pelo que tenho lido, a nova diretoria da CBFA pensa exatamente assim, o que me deixa bastante animado e otimista com o que vem por aí.
Pergunta: O que falta para o FABR realmente chegar a um novo patamar, mais próximo da realidade de outros esportes, como futsal, basquete ou até vôlei?
Gabriel Mendes: Falta o esporte avançar sobre três pilares fundamentais: poder público, setor privado e grande imprensa. O espaço dado ao FA (pelos políticos, pelos empresários e pela imprensa) é incompatível com o tamanho do FA em qualquer pesquisa sobre preferência esportiva e audiência de jogos. O brasileiro ama NFL. Isso já está consolidado. É preciso fazer com que esse amor seja transferido para o futebol americano como um todo. Para isso, é preciso de vontade política para apoiar o FA e disseminar o esporte, por exemplo, nas escolas. É preciso apoio empresarial, para que mais times possam investir na remuneração de atletas e coaches. E é preciso que o FABR conquiste espaço cativo, no mínimo, na TV paga (como acontece com o vôlei e o basquete). Se empresas e imprensa mergulharem de cabeça, inicia-se um círculo virtuoso. Empresas investem mais quando a visibilidade é maior. E o investimento aumenta o nível do esporte, o que atrai ainda mais a imprensa. É um processo natural. Em resumo, falta dinheiro. E isso, às vezes, foge da alçada dos diretores de time e federações. Mas é preciso ser persistente, insistir, buscar incansavelmente projetos de patrocínio ou isenção fiscal. E precisamos estar preparados para uma gestão transparente e profissional, quando o dinheiro começar a circular no esporte em grande escala. É uma questão de tempo. Todo esporte amador, no início, tem suas dificuldades até se profissionalizar. Eu me permito sonhar com a profissionalização do FA, em uma ou duas décadas. Basta olhar duas décadas pra trás e ver onde estávamos. Eu treinava num campo na praia, marcado com chinelos e desenhando jogadas na areia. Então, vamos sonhar alto porque o futuro há de recompensar todo o esforço dos pioneiros nesse esporte.
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